segunda-feira, junho 17, 2013

A Tua escola, Mãe.


Quando fui para a tua escola – repito, a tua escola – nunca quis que deixasses de ser a “Professora Cristina”. E cada vez que precisava de falar contigo – porque naquela altura ainda dizias que nunca irias ter telemóvel porque era uma dependência e as ondas electromagnéticas eram más para a saúde – ia ter com a Dona Lurdes (espero que a memória não me falhe) e pedia para falar com a Professora Cristina. E tu aparecias entre as portas da sala de professores, esse refúgio de troca de opiniões e desabafos.

E o respeito que eu tinha por aquela sala de professores, guardada por duas portas de madeira sempre fechadas. Não me recordo, mas tenho a certeza que me levaste ali muitas vezes quando era pequena, quando tinhas reuniões de avaliação e, caso raro, não tinhas ninguém com quem me pudesses deixar. E sabes do que lembro? Do cheiro da sala, cheirava a livros velhos. E cada vez que ali entrava – enquanto ali estudava, já ao final do dia, sem ninguém por perto, me deixavas entrar – sentia arrepios de frio. Não de medo, mas uma sensação de descoberta. Era a sala dos professores. E havia ali uma magia inexplicável.

Passei três anos na tua escola e muitos dos professores só descobriram que era tua filha já no último ano – muitos nunca souberam. Ali, eras a Professora Cristina. A que ficava desorientada quando um aluno não compreendia a importância do Saber, a que passava fins-de-semana à secretária a corrigir testes e a tentar encontrar estratégias para que ninguém chumbasse. Ali, na tua escola, não eras a minha Mãe, eras a Professora Cristina.

A mesma a quem os olhos brilhavam quando um aluno teu, no exame final de 12°ano, tirava uma nota daquelas. Tu podes não te aperceber da dimensão, mas brilhavam até não mais poder. E pulavas se fosse preciso, dizias aos sete ventos que tinha sido teu aluno. E quem sabe, compreende-te.

E sabes porque entendo isto? Porque também tive muitos bons professores. Na tua escola, na outra escola. E sei ver a paixão nos olhos de quem ensina. O prazer de ensinar, de explicar – uma, duas, três, as vezes que forem precisas.

E por isso entendi a tua angústia quando não conseguias decidir se ias ou não fazer greve. Porque, por um lado, sabias que o tinhas de fazer. Sabias que todas estas medidas, além de te prejudicarem a ti, iriam prejudicar mais os teus alunos no futuro. Por outro, ao fazeres greve, estavas a alterar os planos de tantos outros alunos. E aposto, que no meio de tudo isto, pensaste em mim. E no Tiago. E nos nervos que tínhamos os dois no dia do nosso primeiro exame nacional.

[Liguei-te agora. Não me atendeste. Liguei ao Pai para saber se tinhas feito greve. Disse-me que ainda não tinhas decidido e que não sabia o que ias fazer quando saíste de casa. E o Pai usou a mesma palavra que eu: “Ia naquela angústia”, disse-me].

Não sei o que decidiste. E o que quer que tenhas decidido, tenho a certeza que o fizeste em consciência. Que pensaste, repensaste, e fizeste este exercício vezes sem conta. E só porque agora já não estou na tua escola, não deixas de ser a Professora Cristina. E imagino-te nos corredores da tua escola. Onde, depois de tantos anos, sei que essa angústia te destrói.

[Liguei-te agora. Não fizeste greve aos exames. Eu sei, eu entendo. “Mas vou continuar com a greve às avaliações”, dizes-me. E querias saber o que se passava pelo País.]

Sentes que te roubam a tua escola, o teu ensino, a tua escola pública. Para a qual trabalhas desde os 22 anos.  A Tua escola. E tu, como tantos outros professores, sabes o que isso significa. Daí a angústia.

Mãe, também fico angustiada. Angustiada que eles não entendam isso.

E, por isso, sei que hoje não estou na tua escola. Mas se estivesse, entrava nessa tua sala e dava-te a mão. Para que percebesses que te entendo.

quarta-feira, maio 22, 2013

Do ser [ainda] uma criança

Ouve o que te digo. Não, escuta. Como quem quer ou não entender o que se passa, tanto me faz. Aprende a escutar. Não os gritos de raiva ou as lágrimas durante o filme que vimos juntos.

[Lembras-te como ele gostava tanto de ser criança?]

[E de como me abraçavas?]

Entende que não te quero aqui. Quero que partas, sem dizer adeus. Tu, que nunca me deixaste ir mais além. Hoje, racionalmente, entendo o porquê. Ou talvez me force a entender, que nestas coisas do lado esquerdo nunca se entende a cem por cento.

[E de como sorria, lembras-te?]

["Não queres escrever uma letra para mim?"]

Não me perguntes. Não te chegues a mim como quem me quer percorrer o corpo das pontas dos cabelos aos pés da cama.

Quero deixar tudo ali. Exactamente onde deixei que quebrasses o muro - é sempre assim, já devia saber. Por isso, escuta.

Hoje, que o sol apareceu como sinal de alento. Hoje, que recomecei a escrever. Hoje, que deixo para trás os sorrisos, as letras e teu toque. Hoje, digo-te adeus.

E podia dizer até já. Podia.

Adeus.

[Não, não gastei as palavras. Mas voltei a usá-las sem ti.]