terça-feira, novembro 17, 2009

Pela janela

Passa os dias à janela. Gosta de observar os detalhes, os pequenos pormenores. Desculpa, os pormenores. Repara no relógio falso da senhora rica que passa sem lhe dizer bom dia. E vê-a todos os dias. Sorri-lhe todos os dias. Mas não recebe um olhar de volta. A senhora rica do relógio falso. É assim que ela a cataloga. O relógio imita a luz do ouro. Falso.

São nove da manhã. Os óculos grossos obrigam-na a franzir as sobrancelhas. Há algum tempo que não tem dinheiro para comprar lentes novas. Já para não falar da armação antiga, acastanhada, fora de moda. Uma armação que a distingue. Mas ela não se importa. Ali, perdida numa pequena rua lisboeta, sim, à janela, percorre olhares e gestos. Gritos e lágrimas. E vê as luzes.

A vida fê-la toda ali. E quem ali mora gosta de lhe sorrir. É como um polícia que lhes dá segurança.Observa. Não deixa escapar nada. Mas não, não partilha as histórias. Fica com elas. Guarda-as. No bairro, diz-se que escreve um livro onde deixa palavras a pintar as folhas de papel. Sabe que o homem trai a mulher. Sabe que a mulher não sabe de nada. Mas que faz o mesmo. E não conta. Sabe que o filho salta pela janela, que fuma, que tem amigos impróprios. Sabe que os pais não sabem. Sabe que o presidente da junta aceita uns trocos para fazer favores. Mas não diz. Sabe que um dos funcionários é informador da polícia. Mas não conta. Sabe que o polícia que investiga o presidente da junta até gosta de ir dar uma voltas aos bares das meninas. Sabe que tudo. Observa. Descobre em si os pormenores da intriga. Faz a história. Mas não conta. Podia ser uma estátua. Mas os olhos, meigos, escondidos atrás dos óculos antiquados, não deixam que assim seja.

Tem as pernas presas. Um acidente de automóvel. Para a vida. Por isso não percebe a senhora rica do relógio falso. Por isso continua a sorrir-lhe à espera que um dia compreenda através dos óculos escuros o que lhe vai na alma. Esta senhora, que ela não conhece, mas que acha ser falsa, é a única que não lhe sorri. Não sabe nada dela. Ela sabe tudo de toda a gente. E queria saber a história desta senhora. Da senhora que passa todos os dias, há dias, há meses, há anos, há duas décadas. Que passa sempre de óculos escuros e cabeça baixa. E tem um relógio falso. Ninguém pergunta. Ela também não. Todos os pormenores menos este.

Quer acabar o livro. Dizem no bairro. Um dia estendo-lhe a mão, pensa. Ela não sabe nada da senhora rica. O relógio falso é a pista que lhe alimenta a descoberta. Ela não vai sair dali. Um dia abro-lhe a porta. E alimenta a descoberta. Um dia, abrigo-a em mim. E descansamos.

domingo, novembro 01, 2009

Recados

Tenho de te escrever, essa é a verdade. Mas não o fiz durante algum tempo, não te quis deixar recados, dar-te um pouco de mim. Não o fiz porque achei que não merecias. Foi isto que aconteceu, já to disse, sem reservas, portanto se o ouvires novamente não será uma surpresa.

E, apesar de ter vontade, apesar de já estar a deixar aqui um pouco de mim, continuo à espera. Porque tu estás em dívida. Sabes disso. E eu não me quero voltar a contentar com os espaços. Ou melhor, estou a escrever porque preciso das tuas palavras. Mas não estou a pedir. Porque fizémos esse acordo. E eu detesto pedir. Detesto pedir o que é suposto ter sem ter de relembrar.

No essencial, este é o problema. Ter de agir de forma oposta àquilo que sempre defendi.
Porque o facto de te amar, de te odiar, ou de te esquecer, não justifica nada disso.

Porque tu me habituaste assim.
Porque nós somos isso. Sem isso.
Desaparecemos.