sábado, abril 28, 2012

Das lições de vida.

Diz que é um 'miracle son'. Vamos chamar-lhe João. Quando os pais se casaram, os médicos foram claros: nem a mãe nem o pai podiam ter filhos. O pai tinha partido a coluna e davam-lhe 15 anos de vida. João acabou por nascer. Porque às vezes a vida gosta de contrariar a ciência.
João cresceu a ouvir estórias mirabolantes sobre a mãe. Uma vez, tinha ela 8 anos de idade, entrou numa briga com uma colega de escola. Rapidamente, no corredor da escola - a mesma que João veio depois a frequentar - todos os alunos rodearam as duas miúdas. Depois, veio o silêncio. E um berro: "vais matá-la se continuas a bater-lhe dessa forma". O tio de João implorava para que a irmã deixasse a colega em paz, quando já todos os que assistiam à briga estavam petrificados com tamanha violência. (Escusado será dizer que João revia o episódio sempre que passava no corredor). Mas a sua mãe sempre foi assim. Até que conheceu o pai do João, já então com vários problemas que o deixavam incapacitado fisicamente.

"Ele acalmava-a", conta-me. Encontrou nele alguém a quem se podia dedicar. Um vício que mantém até hoje. Não consegue estar sozinha, não consegue desprender-se. Disseram ao pai que nunca iria ver o filho chegar ao 5º ano de escolaridade. Morreu quando o filho tinha 13 anos. "A minha mãe sempre me fez sentir num segundo plano. Acredito que se hoje lhe dissessem que poderia ter o meu pai de volta, mas que isso implicaria que eu deixaria de estar, ela optaria pelo meu pai." Diz isto conscientemente, aos 23 anos de idade. Diz isto sem qualquer tipo de rancor. E depois do que ouvi, isto é muito.

Depois de dez anos de cuidados médicos diários e uma enfermeira 24 horas por dia, remédios, morfina, cadeira de rodas, sofrimento, o pai morre num hospital, nos cuidados intensivos. A tia foi buscá-lo a casa e disse-lhe: "O teu pai está no hospital". Habituado à situação, limitou-se a acenar afirmativamente com a cabeça. E a tia disse-lhe mais: "Não, não é como das outras vezes. Hoje é o dia em que o teu pai vai morrer". João tinha 13 anos. E não vou dizer que tinha uma vida inteira pela frente, porque aquilo por que teve de passar depois é muito mais que uma vida inteira para muitos de nós.

Quando chegou ao hospital, ficou à porta do quarto. De fora, conseguia ouvir os berros desesperados e descontrolados da mãe. Uma mulher que gritava ao padre com todo o ar que lhe corria no corpo que não ia permitir a entrada do sacerdote no quarto. E gritava. Era só isso que conseguia fazer: gritar com todas as forças que lhe restavam. O avô de João agarrou a filha, encostou a sua cabeça à dela e disse: "Acabou. Vais deixar que isto aconteça e é agora."

Desse dia, João lembra-se de muito pouco. Chegou a casa e deitou-se na cama do pai. Dormiu quase 16 horas seguidas e acordou com a mãe aos berros. Novamente. Desta vez, com a enfermeira que, por lei, tinha de retirar todos os medicamentos do quarto do marido. "Não vai entrar naquele quarto. O meu filho está a dormir e ninguém ali entra." O que ela não queria era desfazer-se do que ainda a prendia ao marido.

João não fala do dia do funeral do pai. Prefere falar dos outros três funerais a que foi forçado a ir nos quatro meses que se seguiram. Uma tia, um tio e um primo. Quando me começou a falar da morte da tia, comecei a perceber a sua relação com a mãe - que entretanto tinha perdido a pessoa a quem se tinha prendido nos últimos 15 anos da sua vida. "Eu não queria ir ao funeral da minha tia. Já não aguentava mais." Mas a mãe disse-lhe que ele tinha de ir. E ele fez um acordo: "Só vou se não beberes álcool antes do funeral. Podes beber à vontade depois, assim que eu vier para casa." A mãe concordou. Mas temporariamente.

No dia do funeral, quando acordou, já ela cambaleava pela casa. Era assim desde que o pai tinha morrido. Latas de cerveja, garrafas de vinho, gin, whiskey, vodka, inundavam a casa diariamente. Percebeu no mesmo momento que entrar em confronto só iria piorar a situação e resolveu entrar no carro. Dever cumprido, regressou a casa. Sem a mãe.

Às 11horas da noite, recebeu um telefonema da tia. "A tua mãe está em casa?" Respondeu que não. Mas já estava habituado a que assim fosse. Tinha um exame no dia seguinte às 9horas da manhã. Às 2horas da manhã, tocam a campainha. Viu a tia a empurrar a mãe para dentro de casa e deixá-la assim, sem qualquer tipo de ajuda. "Enquanto ali vivi, fui sempre eu a tratar dela. Tinha 14 anos". Entrou em casa coberta de lama - tinham ido encontrá-la perdida em álcool sob a sepultura do marido. João ainda tentou segurá-la, mas em vão. Começou a esbracejar - "sempre resolveu tudo ao murro e pontapé, nunca foi uma mulher de palavras" - e rapidamente virou a mesa de jantar, enquanto fazia pontaria ao filho com garrafas de álcool vazias. João lembra-se de fechar os olhos.

Não lhe aconteceu nada. Se nada se pode chamar ao facto de não ter ido parar ao hospital. Porque, para mim, aconteceu-lhe tudo. Dos 13 aos 18 anos a vida de João foi assim. Acordar de manhã para ir à escola e passar por cima de vomitado, lidar com uma mãe diariamente alcoolizada, discussões que envolviam agressões. "Chegou a arrastar-me no chão pelos cabelos". Tudo isto e tudo aquilo que não me conta, e que eu não posso imaginar. Porque não há como imaginar estas coisas.

Hoje, tem 23 anos. O pai morreu há dez. Vive sozinho, em Londres, trabalha e é independente. E diz que não queria que a sua vida tivesse sido de outra forma. "A verdade é que se o meu pai não tivesse morrido e se a minha mãe não me tivesse tratado daquela forma, provavelmente estaria na mesma cidade, com um emprego qualquer e sem ambição".

E quem ouve tudo isto como eu ouvi tem a reacção óbvia: como é que este rapaz não é totalmente desequilibrado e como é que é possível que ainda consiga ter uma relação com a mãe? "É minha mãe e eu adoro-a." E ele podia estar a falar da boca para fora. Mas é tão verdadeiro que assusta. É inteligente. Sabe distinguir o bem do mal. Sabe ouvir. Não tem problemas em falar de nada: do quanto a inércia da mãe o deixa desesperado, do quanto lhe custou a morte do pai, de como se sente feliz e orgulhoso por estar a fazer algo de bom na vida.

Ouvi isto durante quase duas horas. E tive de escrever porque parecia que estava a assistir a um filme. Porque é como ele diz "não me considero uma vítima, porque sei que há sempre alguém em pior situação que eu e a verdade é que isso não me traz qualquer vantagem".

Estive quase para o abraçar. Mas eu e ele somos parecidos nesse aspecto. Ele não precisou que eu lhe desse o abraço para saber que eu lho queria dar. "Tu és como eu, somos os dois muito independentes", disse-me antes de se ir deitar. E acabámos a conversa como quem está a falar da coisa mais natural do mundo. Porque até é. Mas nós vivemos muitas vezes num pequeno mundo que julgamos ser perfeito.

Se um dia tiver de partir, sei que levo comigo um pouco do João. Um pouco do que ele me deu. "Se queres ter sucesso na vida, só podes confiar numa pessoa: em ti mesmo." E, logo de seguida, com um sorriso na cara, diz-me que sabe que é uma daquelas frases feitas, mas que para ele se tornou uma certeza.

Tive o privilégio de ter conhecido muitas pessoas daqui e dali ao longo da minha (ainda) curta vida. Mas ele foi das melhores surpresas. E sei, porque só poderá acabar assim, que um dia vai ser uma pessoa cheia de sucesso.






2 comentários:

Sofia disse...

Não há palavras para tudo isto... Para as lições que a vida nos dá através das pessoas com quem nos cruzamos. Crescemos através delas. E da maneira mais plena que se possa imaginar.

Obrigada por me/nos teres contado esta história. *

O Protagonista disse...


-Intenso, realista, doloroso, autêntico... como a vida às vezes!

Bem Haja Reflexo do imaginário