segunda-feira, maio 23, 2011

"Boliiiiiinhos fresquiiiiinhos"

Via-te passar na praia, na única a que chamo minha, desde que me conheço como gente. De pele bronzeada, não desculpa, queimada pelo sol. Dos quilómetros de areia que percorrias, com os pés enterrados e as calças puxadas para cima, para não teres tanto calor. Uma caixa metálica com três tabuleiros, nos quais dividias os bolos por tipo, não sei bem qual era o critério. Mas tu devias seguir uma lógica. De boné branco, que te protegia uma parte da cara, entoavas "boliiiiiinhooos fresquiiiiiiinhos". Repetias sem manifestar qualquer tipo de cansaço.
As tuas mãos, calejadas de carregar aquele caixa todos os verões, estavam ainda mais pretas do que o teu corpo. Nunca me lembro de te ver menos escuro, mesmo que o verão estivesse no início. Deixavas a barba por fazer e, quando os bolos acabavam, depois de quilómetros e quilómetros de areia, depois de crianças pequenas que te enchiam a caixa dos bolos com areia - sim, mea culpa no que a isso diz respeito -, depois de contares trocos cada vez que se levantava um braço em tom de comando, depois de toda essa agitação, sentavas-te no passeio, com os pés na areia. E ficavas ali, sozinho com os teus pensamentos.
Eu, que te enchia a caixa dos bolos com areia; eu, que preferia um palmier simples a uma bola de berlim - hoje já seria diferente -; eu, que quando era pequena te sorria e já adolescente te tratava com respeito; eu, que pensava, tantas vezes, que o teu trabalho era dos mais difíceis do Mundo. Foste envelhecendo e passaste a coxear. "Boliiiiiiinhooos fresquiiiiiinhos", continuavas a repetir em alto e bom som. Um dia, num daqueles verões em eu regressava, de férias, à minha praia, tu não apareceste. Disseram-me que tinhas sido levado por um comboio. Sempre achei que foi a maneira mais suave para me dizerem que tinhas morrido de uma daquelas doenças que hoje matam toda a gente mais velha. Quis acreditar que o comboio era um rumor, porque, a ser verdade, tinhas de ter aparecido no jornal. Eras parte daquela praia, daqueles meses de férias. Tinhas de ter aparecido no jornal.
De vez em quando, na praia, numa qualquer que já não tem de ser a minha, parece que te oiço "boliiiiiiinhooos fresquiiiiiiinhos". Levanto a cabeça, olha em redor, mas não te vejo. Sei que não te vou ver mais, mas não deixo de te procurar.

2 comentários:

Michel Cordeiro disse...

amei seu blog, entra aee e tome um chá http://michellamb.blogspot.com

Um brasileiro disse...

oi. tudo blz? estive por aqui dando uma olhada. muito legal. apareça por la e aproveite para votar em mim nos tops. abraços.